A arte de furtar

 

José Carlos de Azevedo (*)

Em novembro de 1999, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 9.870 sobre a cobrança de mensalidades escolares e, no dia seguinte o presidente da República baixou a medida Provisória nº 2.091-18 que mudou a lei e permitiu que alunos de escolas particulares não paguem o que devem, peçam transferência no fim do período letivo, que não lhe pode ser negada, e repitam várias vezes esse procedimento que exemplifica a “esperteza” e o “jeitinho” de que muitos se envaidecem, mas são consideradas delinqüência em países civilizados. Se um bom aluno não pode pagar a mensalidade, cabe ao governo conceder-lhe bolsa e não à escola particular custear seu estudo.

As altas taxas de inadimplência podem levar muitas instituições particulares a cerrar as portas e a transferir ao poder público, que nem sabe cuidar de seus próprios estudantes, o ônus de custear a educação desse novo contingente. Ao longo dos tempos, o governo federal comprovou sua incompetência em assuntos de educação, exemplificada por suas próprias instituições à beira da falência devido aos péssimos salários, à sinecura acadêmica, às bibliotecas e laboratórios mal equipados, à fuzarca nas contratações e promoções de professores, à dilapidação do patrimônio, aos dirigentes eleitos pela “comunidade” e à falta de aferição do desempenho acadêmico de alunos e professores.

Hoje, o ensino superior particular abriga uns 3/4 dos alunos e participa em 15% das pesquisas feitas no Brasil, apesar da costumeira má vontade do poder público e de a querela entre ensino público e privado existir apenas em países pouco civilizados como o Brasil; nos EUA, no rol das 20 melhores universidades, 19 são particulares, uma é mantida por governo estadual e não há universidade federal. Além disso, convém saber se é correto dizer que apenas uma meia dúzia de universidades públicas responde por mais de 1/4 pequenas no Brasil e se não mais de 1/4 dos seus professores são por elas responsáveis. Se for verdade, muitas dessas instituições, cujo alto custo seria explicado pela pesquisa, apenas ministram aulas, empregam pessoas e distribuem diplomas; por isso também, o número de instituições particulares de boa qualidade vem aumentando e muitas escolas públicas consolidam merecido mau  conceito.

Ao longo de três séculos, o Padre Antônio Vieira foi tido por autor do livro cujo título é o mesmo deste artigo e, no século passado, teriam sido confirmadas suspeitas no sentido de o autor não ser o erudito jesuíta. Considerado obra-prima do português castiço, a própria história desse livro, que é uma sátira e um protesto, é nebulosa e até a data e o local  de sua publicação, em Amsterdã e em 1652, ainda são objeto de controvérsias. A atribuição da obra a Vieira não decorreria apenas do estilo primoroso de seu autor, mas das lições de conteúdo moral do erudito religioso, cuja defesa dos índios e judeus levou o Santo Ofício a considerá-lo herege. O livro é atual, em particular neste jardim zoológico de trapaças que é o Brasil dos larápios provectos.

Aqui, as roubalheiras são praticadas pelos que, em órgão públicos, são pagos para velar pelo patrimônio comum da nação; os exemplos estão aí. Mas as denúncias e comprovações de corrupção logo são esquecidas e constituem motivo de chacota, tal a certeza da impunidade dos delinqüentes, quando mais importantes os cargos públicos que exerçam. Diz o autor de arte de furtar, referindo-se a tais pessoas: “Conjugam o verbo rapio por todos os modos porque furtam por todos os modos da arte (...) tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo (...) furtam pelo modo permissivo porque permitem que outros furtem (...).”

A rapinagem é velha como a humanidade existirá para sempre e não faltam exemplos tenebrosos, em particular na história da Inquisição  em Portugal, que perseguiu Vieira. Mas não é a corrupção que preocupa no Brasil, mas comprovar que maus exemplos e maus conselhos partem também do poder público, como essa medida provisória, que é mais uma demonstração irrefutável do prestígio da lei de Gerson, que recomenda levar vantagem em tudo. De qualquer jeito.

 

(*) Ex-Reitor da Universidade de Brasília (in Jornal do Brasil, 20/03/03)

 


Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação

( 180 ) 05/03

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