Solidariedade pelo Avesso: Pedagogia como Efeito de Poder

 

Pedro Demo (*)

Base teórica da análise

Analiso dois autores ideologicamente antípodas, Popkewitz e Sequeiros, a propósito de seus dois livros recentemente traduzidos e publicados pela Editora ARTMED.1 (Popkewitz, 2001; Sequeiros, 2000) Guardo, por trás da análise, a referência teórico-crítica do conhecimento como efeito de poder, na tradição da teoria crítica da Escola de Frankfurt e, hoje, dos estudos pós-modernos ditos pós-colonialistas, que ressaltam com cores vivas a dialética contraditória do poder nos processos de construção do conhecimento.2. (Harding, 1998; Narayan/Harding, 2000). Acrescenta-se a esta referência teórica a contribuição de Foucault em torno da tessitura manhosa, microfísica e arqueológica do poder e do saber, da qual fazem parte nossa linguagem, conhecimento e inserção social.3 (Foucault, 1971; 1979; Portocarrero, 1994) Do ponto de vista crítico, a pregação da solidariedade pode cair no engodo de evitar a iniciativa de confronto por parte dos marginalizados, assim como certas propostas que se querem pedagógicos resultam em processos de imbecilização. Conhecimento que esclarece é o mesmo que imbeciliza.

Teorias do efeito do poder aplicadas ao conhecimento tomam como referência a importância do conhecimento nesta sociedade (chamada freqüentemente de "sociedade do conhecimento"), seja para desmascarar o colonialismo implícito na cultura ocidental do conhecimento, seja para desarmar esquemas ideológicos implícitos em políticas de ajuda de estilo salvacionista, geralmente moralistas. Por certo, amplia-se, ou muda-se em parte, a concepção de poder, pelo menos no sentido de o considerar fenômeno dialético não linear, ambíguo e ambivalente, presente em todas as relações sociais, inclusive no processo de construção do conhecimento. Não podemos apenas pensar logicamente, porque a lógica, a par de ser método de análise sistemática e padronização de conteúdos, é também forma de "enquadramento" da realidade, como é hoje reconhecido também pela matemática difusa.4 (Kosko, 1999. Demo, 2000a) Kosko assume que a matemática linear, baseada em dicotomias simples, é da ditadura: esta tem do poder visão estanque: ou a favor, ou contra. Na prática, o poder tende a ser trama diluída ambígua e ambivalente, que, mesmo conservando sempre a clivagem entre um lado que mais obedece e outro que mais manda, embaralha os dois, revelando tecido não-linear feito de contrários. Nunca existe um lado apenas, mas a dinâmica que abarca todos os lados, exclui incluindo, inclui excluindo, perdendo-se em efeitos dos quais já não temos noção no contexto. Esta percepção levou biólogos a estudarem a "hierarquia reversa" 5 (Boehm, 1999) como fenômeno fundamental da sociedade, sobretudo na pré-história humana, quando era mais comum os membros de bandos e tribos nômades controlarem seus líderes, de tal forma que o bem-comum pudesse prevalecer. Quem manda "precisa" de quem obedece; este não é descartável, ainda que se aloque no lado mais dependente da relação.

Como mostrou bem Caufield sobre o Banco Mundial, a linguagem da "ajuda ao desenvolvimento" é claro efeito de poder, porque esconde sob a ajuda política forma dura neoliberal de marginalização crescente das populações pretensamente ajudadas.6 (Caufield, 1988; Demo, 2000b) O poder é fenômeno manhoso, não pode ser ostensivo e por isso aprende a vender a dominação como ajuda. Este jogo ideológico está também em todas a formas de conhecimento, porque não pode ser abstraído das condições históricas e sociais de sua construção, ainda que a isto não se reduza. Busca gerar no "ajudado" freqüentemente a acomodação, para que a dominação não seja percebida como tal. Por vezes, pode até ser desejada, em contexto de pobreza política extrema. Quando entendemos poder como dicotomias de soberania, a salvação do outro implica passar de um lado para outro, como se pudesse estar apenas num lado, sobretudo como se fosse efeito do soberano.

Esta temática complexa reconduz a preocupação com a pobreza política embutida facilmente em programas educativos, quando inserem efeitos imbecilizantes pelo fato de não formularem satisfatórias teoria e prática críticas.7 (Demo, 2000c) Pobreza política é o resultado do cultivo da ignorância, a condição de massa de manobra, na qual a pessoa é manipulada de fora para dentro, geralmente sem perceber. Em vez de apostar na emancipação, acomoda-se na ajuda externa, nas recomendações do próprio algoz, nas boas vontades da causa principal da exclusão. Não nega a exclusão material, apenas aponta para seu núcleo político principal, ou seja, a destituição da condição de sujeito, para que se fixe como simples objeto de manipulação. O atual discurso sobre solidariedade pode conter este efeito imbecilizante: além de ser tendencialmente discurso dos dominantes, não passa de ajudas residuais. Dificilmente implica a emancipação autônoma das populações pertinentes.

É próprio da ambigüidade e ambivalência do conhecimento ter na contraface a imbecilização. De certa maneira, o conhecimento científico foi o maior ato de poder do ser humano, porque, com ele, pode mudar sensivelmente sua condição histórica: alcançou ser mais sujeito do que objeto. Todavia, como mostram bem as alegorias em torno do conhecimento proibido e da censura à inteligência crítica, o que melhor se conhece é como obstruir o conhecimento dos outros. O conhecimento tem um fator disruptivo – a capacidade possível de olhar para além do que querem que se olhe. Quem assim faz, torna-se suspeito, perigoso. Esta constatação tão comum na história da humanidade bastaria para indicar a conexão fisiológica do conhecimento com o poder. Conhecer geralmente implica cuidar que outros conheçam menos. O fenômeno do conhecimento científico não se reduz a isso, como mostrou a reação crítica ao pós-modernismo,8 (Sokal/Abricmont, 1999) mas precisa incluir este horizonte crítico.

A seguir, faço análise dos dois autores em foco, Popkewitz, que tomo como referência crítica inovadora, ainda que tendencialmente impiedosa, e Sequeiros, que tomo como referência conservadora, ingenuamente salvacionista.

Popkewitz: conhecimento como prática política

Este autor foi chamado em 1990 para avaliar um programa de educação – Teach For America9 – com tons nitidamente salvacionistas, voltado para alunos marginalizados urbanos e rurais. No decorrer do estudo e sobretudo da análise etnográfica, Popkewitz foi engendrando a idéia da pedagogia como efeito de poder, sem abandonar de todo a postura clássica crítica, à qual sempre esteve de alguma forma ligado. Observou que as linguagens de "ajuda" às crianças incorporavam formas de raciocínio sobre ela que a confinavam em esquemas subalternos. Como de uso, lançou o olhar sobre questões de raça, gênero e classe, mas percebeu que esta reconstrução encobria efeitos de poder, já que se imaginava ingenuamente que, mexendo na estrutura do poder, seria possível retirar tais crianças do outro lado. Deixava-se de anotar que, para capacitar tais alunos para sua emancipação, seria mister fazê-los capazes de lidar com o poder, pleitear e negociar poder dinamicamente, não apenas apresentar-lhes uma oferta oficial, no fundo conservadora, porque tipicamente "normalizadora". Normalizadora no sentido funcionalista de confinar as crianças ainda mais. Educação pelo avesso, na verdade, embora vendida como salvacionista, no contexto do que chama de "poder pastoral". O conhecimento implicado no programa mesclava, ao lado de promessas de ajuda e resgate, efeitos produtivos da estrutura dominante social, que acabavam, ao final, aprofundando as desigualdades sociais, na medida em que estas crianças, precisando de tratamento especial, revelavam, nisto mesmo, a incapacidade de inserção igual na sociedade.

O autor considera que o conhecimento é prática política e por isso as idéias pedagógicas dividem e diferenciam as crianças, mesmo, e talvez sobretudo, quando se apresentam com linguagens equalizadoras, porque incapacitam e desqualificam este tipo de proposta. Assim como o conhecimento disponível e dominante na sociedade nos "normaliza", à medida que nos sentimos obrigados a respeitá-lo (como fazer dieta, exercício físico, aprender, estudar, ganhar dinheiro etc.), assim igualmente o conhecimento usado na escola guarda efeitos de poder, geralmente imperceptíveis, que reproduzem o sistema vigente.

"Grande parte da vida moderna é preparada por sistemas de conhecimento especializados que disciplinam a maneira como as pessoas participam e agem. De modo geral, o conhecimento especializado modela o ‘nosso’ pensamento e a ‘nossa’ ação sobre as calorias da nossa dieta, contribuindo para a nossa saúde pessoal; sobre a poluição no nosso ambiente, que afeta a nossa vida; sobre o nosso corpo e a nossa mente, como possuidores de estágios de desenvolvimento, personalidade e processos de auto-realização, e sobre nossas crianças, como dotadas de inteligência, com um crescimento e uma infância normais. Esses pensamentos assumidos como naturais não são naturais; são construídos a partir de sistemas de conhecimentos especializados. O poder desse conhecimento especializado está no fato de não ser apenas conhecimento. As idéias funcionam para modelar a maneira como participamos como indivíduos ativos e responsáveis. Tal fusão do conhecimento público/pessoal que disciplina nossas escolhas e possibilidades pode ser pensada como os efeitos de poder. Essa noção dos efeitos de poder é muito diferente daquela de soberania. Diz respeito às ações produtivas para a nossa participação, em que a soberania se concentra no que domina e reprime nossas ações".10

O conhecimento é tomado como uma "lente" teórica, que filtra a realidade, considera mais ou menos real, enquadra expectativas de realidade, de acordo com a inserção sociohistórica. Não se vê tudo, ou o que se quer, mas o que somos levados a ver, dentro da respectiva sociedade.

"Este livro desafia algumas noções sobre pesquisa de políticas, avaliação e ensino. Uma suposição que está por trás de grande parte do discurso contemporâneo sobre o ensino é que há caminhos racionais para a salvação – a escola eficaz, o professor eficiente e autêntico. O mundo é visto como sendo baseado na certeza e em práticas organizadas com lógica. Porém, quando examinamos as práticas de formulação de políticas e de pesquisa, não encontramos segurança moral, política e cultural. A promessa de pesquisa e avaliação da escola não está em prognosticar o que deve ser feito para ajudar os ‘outros’, mas em compreender a política do conhecimento que produz os temas da reforma. Dizendo isso de maneira um pouco diferente, há uma forte tendência reformista na vida intelectual que ‘diz’ que idéias devem ser usadas nos projetos políticos. Este estudo sugere que as idéias inserem projetos políticos e que um dos papéis das práticas intelectuais é questionar o dogma reinante sobre o significado intelectual dos atores e as regras do progresso".11

Este propósito reformista implícito aparecia no próprio contexto do programa: a idéia de que a iniciativa individual e a empresa privada fariam as coisas melhor que o Estado, considerado paralisante, incapaz. Ressuscitou o Peace Corps de Kennedy12 e o fervor de professores jovens no futuro da nação. O tom pastoral, salvacionista, era evidente. Como toda pedagogia metida a pastoral, evangélica, perde-se em promessas que os efeitos de poder destróem sarcasticamente. "Este estudo pode ser lido tanto como a apresentação de uma análise detalhada dos discursos mobilizados para produzir sistemas de exclusão nos Estados Unidos quanto como um método para se estudar as políticas espaciais do conhecimento educacional através do enfoque na estrutura dos discursos". 13 Não se trata de espacialização geográfica, mas virtual, e não menos real, de confinar as crianças e as desqualificar.

"Minha opinião é de que os sistemas da lógica da escolarização comuns são o lugar da batalha para um ensino mais eqüitativo e uma sociedade mais justa. Entretanto, ao se engajar nessa batalha, educadores, professores e administradores têm pouquíssimo entendimento de como os sistemas concretos de idéias incorporados na prática da sala de aula atuam para produzir o terreno desigual que chamamos de educação. Embora não proporcione respostas para perguntas sobre as alternativas a buscar, pretendo pôr fim à maneira como ‘contamos a verdade’ sobre nós mesmos como professores e sobre as crianças e, assim, abrir um espaço potencial para alternativas".14

A emancipação das crianças dificilmente poderia ter como móvel principal o discurso reformista dominante, pois é no fundo uma arapuca. Para chegar à emancipação, é mister que tais crianças deixem a condição de objeto de ajuda, para tornarem-se capacitadas a organizar, a partir de si mesmas, as oportunidades de vida e as alternativas pretendidas.

Marginalizar não é propriamente apenas excluir, mas incluir na margem. Dito de outra maneira: colocar o marginalizado em seu devido lugar. Torna-se clara a relação dialética da unidade de contrários. Neste sentido, o conceito de marginalização é mais adequado do que o de exclusão, porque este passa a idéia de que o excluído já não faz parte do sistema. A condição de excluído é precisamente modo específico de estar no sistema. É o que sugere o conceito dialético de poder: mesmo fazendo parte desta relação na condição de dominado, este não está fora, mas precisamente dentro. Na percepção weberiana de poder/obediência, acentua-se a exclusão, ao ponto de definir o obediente como aquele que assume a vontade do mandante como se fosse sua própria. Esta situação representaria o extremo marginalizante da relação de poder, mas mesmo aí o marginalizado representa "pólo" da dinâmica do poder. A análise de Popkewitz realça a idéia da pedagogia marginal como "coisa pobre para o pobre", e que hoje se aplica, de modo geral, à escola pública. Os próprios índices de aproveitamento indicam que o marginalizado pode estar nelas exacerbando ainda mais sua condição de pobre.15

Sequeiros: solidariedade como ajuda

Embora me pareça equivocado o moralismo de Sequeiros, não busco desqualificar sua obra, porque só posso concordar com a tese da solidariedade como princípio educativo. Critico apenas a falta flagrante de visão dos efeitos de poder deste tipo de proposta, que a torna pastoral ingênua, inócua e mesmo inverídica. Trata-se de pedagogia "de sacristia", repleta de boas intenções, mas que guarda na alma o "olhar do centro". Reflete a parceria de que a Europa é capaz – nunca foi parceira de outras culturas, nem mesmo em suas religiões – ou seja, definida por ela. Parece-me que os efeitos do colonialismo são nítidos, ainda que camuflados em linguagem evangélica. Devo distinguir entre solidariedade como princípio educativo – necessário, atualíssimo – e solidariedade como práxis histórica – dialeticamente não-linear, ambivalente, ambígua. Simplificando um pouco a questão, a solidariedade de que precisamos refere-se ao que Harding chama de "standpoint epistemology": saber postar-se na cultura do outro, tentando honestamente partir dela. Este olhar não é viável de todo, pois o ponto de vista do observador se impõe biológica e hermeneuticamente na interpretação da realidade (Edelman/Tononi, 2000. Maturana, 2001).16 Mas é gesto imprescindível para entender outra cultura, no sentido da multiculturalidade.

Primeiro, predomina linguagem excessivamente normativa, moralista. "Trata-se definitivamente de preparar o amanhã para se ter um mundo mais fraterno, justo e humano, no qual os muros das raças, dos idiomas, do sexo, maneiras de organizar a sociedade e outros elementos de diversidade cultural não sejam barreiras para a convivência e para a solidariedade".17 Pleiteia nova cultura no mundo, diferente desta ocidental, ligada no consumismo e nos valores individuais, não solidária para com os problemas dos outros, sobretudo dos marginalizados neste planeta. Defende a contracultura da solidariedade internacional, com propensão ecológica, para se poder pensar globalmente e agir localmente. Aposta na sensibilização mais do que em propostas fundadas no conhecimento intelectual.

"Em uma sociedade planetária como a atual, faltam elementos de sensibilização voltados para os graves problemas globais do nosso mundo. Quando falamos de sensibilização, não estamos nos referindo a maneiras refinadas de dominar consciências, pois sensibilizar não significa ‘agir sobre a mente do outro’. Sensibilizar é educar no sentido mais profundo da palavra: acompanhar o educando para que encontre seus próprios sistemas de valores, para que canalize suas energias mais humanas para metas mais solidárias; ajudá-lo a sair do próprio egoísmo. Ajudar aqueles que são educados por nós a voarem com suas próprias asas, e não com asas postiças, que muitas vezes são impostas pelos educadores".18

Aparece aqui tom crítico pertinente, aliás comum no texto quando se refere ao processo de produção crescente de desigualdade entre os povos, mas este veio não é levado a fundo, nem se retiram daí decorrências práticas. Predomina sempre a linguagem quase bíblica, uma reedição do Evangelho, em termos de boas intenções.

"A experiência mostra que uma definição de solidariedade como adesão permanente à causa dos outros (os carentes ou privados de algo aos quais eu posso ajudar), que nos leve a tomar decisões pessoais e coletivas as quais impliquem ceder o próprio tempo, dinheiro e esforço, tudo isso de uma maneira altruísta e gratuita, não é fácil de ser entendida nos dias de hoje, principalmente quando afeta nosso próprio tempo, bolso ou esforço. Para uma nova cultura educativa solidária, necessitamos de professores solidários. Professores que formem a si mesmos e a outros para que, mais do que memorizar informação, tomem uma atitude diante da situação injusta do mundo e não aceitem a cultura da cegueira e do esquecimento. Tudo isto implica uma nova sensibilidade, no sentido que foi citado, e que nada tem a ver com ‘agir sobre a mente do outro’ ou ‘esquentar a cabeça’ (como dizem os jovens). Sensibilizar é um processo complexo de reorganização intelectual e, sobretudo, afetiva, que canaliza as atitudes pessoais e sociais não para metas exclusivamente individuais ou familiares, mas sim para metas progressivamente mais amplas e solidárias. Educar para a solidariedade não é nada fácil, pois implica mudar uma série de hábitos culturais (considerados como valores positivos pela sociedade neoliberal e estimulados pelos meios de comunicação social) profundamente arraigados em uma sociedade presunçosa como a dos países ricos. As resistências sociais, psicológicas, emocionais e atitudinais para mudar essa sensibilidade são enormes". 19

A valorização da sensibilização reflete mais modismo atual (valorizar a emoção), do que a análise mais séria do embate em torno do conhecimento. Por trás da falta de solidariedade estão também estruturas fortes de conhecimento colonialista que tiveram e mantêm o duplo efeito de destruir a natureza e tornar a maioria dos povos marginalizada. 20 Buscando definir o termo solidariedade, enreda-se na contradição de reconhecer, de um lado, que a sociedade européia é profundamente não-solidária, e, de outro, que "nossa sociedade não aceita as pessoas ou as situações não-solidárias".21 Por isso, assim contextua solidariedade:

Em um mundo que não só perpetua, mas também aumenta o tamanho das desigualdades sociais, a consciência humana vai-se abrindo cada vez mais para a necessidade da solidariedade, talvez a categoria ética que melhor sintetize os desejos da humanidade neste momento. Então, tornar-se responsável pelo outro, em uma sociedade de relações assimétricas, está em perfeita sintonia com os desejos de nosso mundo. Este texto é remetido imediatamente à solidariedade como categoria ética, como atitude que leva a assumir compromissos eficazes de transformação das raízes das situações geradoras de desequilíbrio e de injustiça. Uma atitude que nasce não de um lamento infantil, mas de uma sensibilidade eficaz transformadora da própria pessoa, que reorganiza sua vida em outra direção: a da solidariedade, da responsabilidade e da justiça".22

Segundo, ao analisar as relações Norte/Sul, como gosta de colocar, observa bem os problemas, mas não estabelece sua dialética de poder de modo adequado.

"No planeta Terra, onde vivem quase seis bilhões de seres humanos, 20% da população dispõem de 82,7% da renda total, enquanto que outros 20% usufruem somente de 1,4%. Insistimos sempre em dividir o mundo segundo as culturas, os países e as ideologias, quando a maior divisão é a que existe entre riqueza e pobreza. Para designar essas diferenças, são empregadas distintas denominações; aqui optaremos pela divisão do planeta Terra em Norte e Sul. Essa divisão não é geográfica, mas fundamentalmente econômica, política e social. Por Norte, podemos entender duas coisas: a minoria rica do planeta, apenas 20% da população mundial presente em todos os países. Por outro lado, também podemos entender por Norte os 25 países mais ricos, entre eles a Espanha, com grande desenvolvimento industrial e que detém o poder político. O Sul representa 80% da população – dependente, pobre, marginalizado. Também é chamado de Terceiro Mundo e hoje agrupa mais de 150 países; e o Quarto Mundo, ou o conjunto dos marginalizados inseridos nos países ricos. As decisões importantes são tomadas pelos países ricos, e os países do Sul decidem cada vez menos seu futuro. Um terço da população mundial (mais de 1,7 bilhões de pessoas) vive em um estado de extrema pobreza. Dois quintos (2 bilhões) são pobres e suas rendas não permitem que suas necessidades mínimas de moradia, de vestuário, de alimentação, de educação e de saúde sejam atendidas".23

Chega a acrescentar que os pobres são necessários para que o mundo seja globalmente mais rico. Entretanto, ao analisar as raízes da desigualdade, prefere salientar que o Sul é apenas culturalmente diferente, desqualificando sem mais a visão crítica da dependência de conotação marxista ou similar como unilateral e simplista. Está certo quemirar o cenário apenas sob esta ótica é pouco, mas ainda é a ótica dialética mais pertinente.24 Deixar de perceber os vetores de poder é muita ingenuidade. Entre outros percalços, indica, ao lado de várias opões solidárias, também a "solidariedade de mercado",25 desconhecendo por completo a trama desigual capitalista.

Chega, por isso, apenas ao nível reformista pastoral da justiça, sem maiores conseqüências.

"O problema da solidariedade não é um problema de ‘falso moralismo’ ou ‘consciência pesada’ do rico que sente pena do pobre. Não é para ser tratado como beneficência, é um problema de justiça. A verdadeira cultura da solidariedade deve mostrar que a injustiça estrutural fixa suas raízes no mundo dos valores da poderosa cultura ocidental, que vai se impondo como mundial para todos, com pretensões de exclusividade. Muitas vezes, não haverá justiça e nem solidariedade sem a transformação de determinados aspectos das culturas. Não basta lutar pela transformação das estruturas socioeconômicas, já que as raízes da injustiça estão fixadas tanto em atitudes pessoais como em estruturas injustas. A cultura não pode ser separada da justiça. Desse ponto de vista, a luta pela justiça identifica-se, em muitos aspectos, com a educação para a cultura da solidariedade. A educação para a cultura da solidariedade é uma necessidade exigida pela própria dimensão humana".26

Terceiro, o resultado desta postura frouxa e apelativa é a falta total do ponto de vista dos desiguais. Torna-se impraticável aceitar a idéia necessária de que, para sair da miséria, os desiguais não podem ser solidários com os dominadores. Um resquício desta expectativa distorcida está na defesa solene de 0,7% do Produto Nacional Bruto e da renda pessoal dos países ricos como ajuda para os países pobres. Busca-se, assim, tratar problemas considerados gravíssimos e crescentes com restos orçamentários. O dia em que os "sem-terra" forem solidários com os grileiros, estaremos no céu, ou seja, fora da práxis histórica concreta. Como princípio educativo, devemos defender a paz entre destituídos e dominadores; como práxis histórica, jamais. No fundo, trata-se de solidariedade que desobriga o rico, acalma a consciência e deixa tudo como está.

O que falta em um e o que sobra no outro

Pode-se apontar em Popkewitz certo excesso na crítica, quando tende a arrasar tudo como efeito de poder. Embora em sociedade não seja possível escapar da dinâmica dialética do poder, nem tudo é efeito de poder. Podemos, exagerando a hipótese de trabalho, derrubar toda política, porque, em algum canto, de algum modo, apareceria escondida alguma segunda intenção ou algum efeito desapercebido. Não é assim que todo relacionamento entre dominadores e dominados tenha que ser marcado apenas pelo efeito de poder, ainda que este sempre compareça. O Teach for America prestou-se bem à análise de Popkewitz, porque era flagrante seu reformismo conservador, laços patriotas frívolos, pastoral normalizadora. Mesmo assim, houve certamente jovens professores que investiram tudo na emancipação dos marginalizados, por vezes de modo canhestro, ou mesmo contraproducente, mas de maneira sincera. Este parece ser problema constante em programas de solidariedade: não existem apenas os farsantes, por mais que estes em nossa sociedade possam predominar (em particular, o Programa Solidariedade do Governo Federal e os "Amigos da Escola", da Rede Globo). Facilmente "brinca-se de solidariedade". 27 A assim dita "economia solidária" também está cercada de riscos de manipulação, mas, no nível popular, encontram-se iniciativas de qualidade e/ou sinceridade irrecusável.28 O voluntariado solidário pode ser muito facilmente "explorado" por vivaldinos de toda espécie, mas mesmo assim a cidadania de iniciativa voluntária continua sendo um dos pilares da democracia, em particular sob a forma do associativismo.29 O fato de freqüentemente encontrarmos pessoas que ingenuamente acreditam nesses programas não elide a potencialidade e a realidade de programas solidários de valor social inestimável. Por outra, a denúncia do efeito de poder - sumamente necessária - não poderia resultar no desincentivo a movimentos populares associativos ou similares.

Popkewitz,30 entretanto, mostra, com argúcia incomparável, as manhas do poder e do conhecimento, também as ingenuidades que muita crítica esconde, por ser no fundo carente de autocrítica. Grande parte dos programas educacionais dos governos não passa de programas de compra de equipamentos, movimento de verbas, arranjos partidários, pirotecnia para futuros candidatos. Mostra sobretudo que a imbecilização é a sombra do conhecimento, sendo a mesma inteligência ou competência que atua em ambos. Em todo processo educativo, por ser um campo minado de poder, existe também imbecilização. O educador não tem a escolha ingênua e frívola de acabar com a imbecilização, mas de conviver criticamente com ela, buscando reduzi-la ao mínimo possível. A pior pobreza política que existiria seria a pretensão de acabar completamente com ela, assim como a pior neurose é aquela que se acha perfeitamente superável. O bom educador não é aquele que executa a emancipação do aluno, mas, primeiro, aquele que menos atrapalha, segundo, munido de tal "desconfiômetro", aquele que investe nas potencialidades do educando, de dentro para fora, e, terceiro, aquele que não se cansa de controlar o risco iminente dos efeitos de poder.

Já em Sequeiros falta este espírito crítico, para emprestar a qualquer proposta de solidariedade a suspeita sadia de efeito pelo avesso, sobretudo quando advinda do centro. Não nego que o centro possa suscitar propostas aceitáveis, mas o risco dos efeitos de poder é tanto mais próximo. Chamar a solidariedade de questão de justiça basicamente, mas não perceber os efeitos de poder nas relações Norte/Sul, é mostrar-se incapaz de construir propostas a partir dos marginalizados. É desconhecer que os excluídos precisam fundamentalmente da capacidade de se confrontar. Solidariedade a partir do centro seria, então, habilidade de fomentar esta competência humana, postando-se a partir da pele dos excluídos. Não pode ser proposta reformista, muito menos funcionalista, mas algo que toque as raízes da pobreza política envolvida. Não deixa de ser confortante ver que autores europeus descobrem os valores da solidariedade internacional e frente aos povos marginalizados. É pregação não só compreensível, mas sobretudo necessária. O problema é até que ponto não passa de pastoral invertida. Temos poucas razões para acreditar neste centro. O Norte nunca foi parceiro de qualquer outra cultura.

Parece-me indisfarçável a "consciência pesada" do centro, no fundo, a mesma de qualquer sociedade onde os ricos se escondem atrás de esmolas, para dar a entender que estão preocupados com os marginalizados. Como sempre, é o medo do colapso do sistema, ou seja, a perda dos privilégios históricos, que move tais iniciativas, não os direitos dos marginalizados. É preciso, por isso, vituperar enfaticamente o efeito de poder de propostas que fazem da solidariedade ou da pedagogia "coisa pobre para o pobre". Solidariedade como princípio pedagógico é irrecusável. Mas, como efeito de poder, é forma elegante e insidiosa de aliciamento subalterno.

Notas

1 POPKEWITZ, T. S. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: ARTMED, 2001; SEQUEIROS, L. Educar para a solidariedade: projeto didático para uma nova cultura de relações entre os povos.. Porto Alegre: ARTMED, 2000; O primeiro autor é ligado à Escola de Frankfurt e conseqüentemente à teoria crítica, em sua versão atual de estilo pós-moderno. O segundo autor representa movimento espanhol e europeu de pregação da solidariedade, de estilo moralista.

2 HARDING, S. Is Science multicultural? postcolonialisms, feminisms, and epistemologies. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1998; NARAYAN, U.; HARDING, S. (Ed.). Decentering the Center: Philosophy for a multicultural, postcolonial, and feminist world. Indianapolis: Indiana University Press, 2000.

3 FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1971. Id. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979; PORTOCARRERO, V. (Org.). Filosofia, história e sociologia das ciências: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994.

4 KOSKO, B. The Fuzzy future: from society and science to heaven in a chip. New York: Harmony Books, 1999; DEMO, P. Certeza da incerteza: ambivalências do conhecimento e da vida. Brasília: Editora Plano, 2000a.

5 BOEHM, C. Hierarchy in the forest: the evolution of egalitarian behavior. Massachusetts: Harvard University Press, 1999.

6 CAUFIELD, C. Masters of illusion: the World Bank and the poverty of nations. New York: Henry Holt and Company, 1998; DEMO, P. Educação pelo avesso: assistência como direito e como problema. São Paulo: Cortez, 2000b.

7 DEMO, P. Conhecer & aprender: sabedoria dos limites e desafios. Porto Alegre: ARTMED, 2000c.

8 SOKAL, A.; BRICMONT, J. Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. São Paulo: Record, 1999.

9 TEACH FOR AMÉRICA - programa educacional voltado para alunos marginalizados urbanos e rurais, lançado no fim década de 80, em grande estilo e com fortes conotações voluntárias, prometendo o resgate dos direitos de tais alunos na escola.

10 POPKEWITZ, T.S. op. cit., (2001) p. 13.

11 Id. ibid., p. 15.

12 Peace Corps - programa de desenvolvimento do governo Kennedy, com base em adesões voluntárias de americanos que eram enviados a países em desenvolvimento, com o objetivo de colaborarem com as populações marginalizadas.

13 POPKEWITZ, op. cit., (2001) p. 20.

14 Id. ibid., p. 21.

15 No último Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), divulgado em dezembro de 2001 (Folha de São Paulo, C6, 8 de dezembro de 2001), o Brasil ocupa o último lugar em 30 países, no que concerne ao desempenho da escola pública em matemática, ciência e leitura. Na avaliação divulgada em 2001 das escolas públicas estaduais de Pernambuco descobriu-se que o aproveitamento de matemática na 3a série do Ensino Médio teria sido de 2% e de português de 6%.

16 EDELMAN, G.M.;TONONI, G. A Universe of consciousness: how matter becomes imagination. New York: Basic Books, 2000.

17 SEQUEIROS, op. cit., (2001) p. 10.

18 Id. ibid., p. 11.

19 Id. ibid., p.18.

20 SACHS, W. Dicionário do desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000.

21 SEQUEIROS, op. cit., (2001) p. 19.

22 Id. ibid., p.20.

23 Id. ibid., p. 22.

24 Id. ibid., p.68.

25 Id. ibid., p. 68.

26 Id. ibid., p. 63.

27 SILVA, M.O.S. (Coord.). O Comunidade solidária: o não-enfrentamento da pobreza no Brasil. São Paulo: Cortez, 2001.

28 SINGER, P.; SOUZA, A.R. A Economia solidária no Brasil: autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2001.

29 DEMO, P. Cidadania pequena. Campinas: Autores Associados, 2001

30 POPKEWITZ, T.S. op. cit. (2001)

(in Boletim Técnico do SENAC, vol. 28, nº 1)

 


Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação

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