Por que abandonamos a escola pública

 

Norman Gall (*)

Até quatro semanas atrás, Edi Greenfeld, de 52 anos dirigia a Escola Municipal Madre Joana Angélica de Jesus, em Guaianases, região violenta da periferia de São Paulo. Edi era uma educadora dedicada. Trabalhou nos fins de semana para melhorar o padrão de uma escola de 2.120 alunos, dotando-a de 15 computadores e sala de música, vigiando a qualidade da merenda. Ainda dava aulas de História à noite em outra escola, chegando em casa à meia-noite. Segundo notícias da imprensa, seu erro fatal foi resistir aos traficantes que vendem drogas na escola. Após a morte de Edi, o diretor do Departamento de Narcóticos da Polícia Civil avisou aos professores das escolas públicas: "É muito perigoso enfrentar esse bandidos."

Na tarde do dia 1º de abril, Edi Greenfeld foi assassinada perto da escola com dois tiros na cabeça. Até agora, o assassino não foi identificado. Sua morte alinha-se entre a grande maioria dos 11.000 homicídios registrados a cada ano na Grande São Paulo, que não são solucionados. A epidemia de homicídios é terrível, mas a tolerância a eles espanta mais ainda. Uma procissão de 2.500 alunos, professores e pais parou o trânsito no centro de Guaianases, seguindo até o distrito policial para exigir apuração do crime.

O assassinato de um diretor de escola em São Paulo é um caso raro. Em qualquer cidade civilizada do mundo, o assassinato de um diretor exigiria a presença do prefeito e do secretário de Educação para dar socorro moral à escola afetada, à família da vítima e no enterro. Nada disso aconteceu no assassinato de Edi Greenfeld. Por quê?

A falta de resposta oficial, prática ou simbólica, ao assassinato de um diretor de escola dá testemunha do descaso com o ensino público que virou norma em nossa sociedade. As autoridades escolares parecem pouco preocupadas com o impacto moral do assassinato de Edi Greenfeld na vida profissional dos milhares de diretores e professores da rede pública na Grande São Paulo. Gente que enfrenta todos os dias o tráfico de drogas e armas dentro das escolas, aulas superlotadas, badernas nos corredores, ameaças e invasão das unidades por delinqüentes. Uma professora de Diadema nos contou que, na escola onde leciona, alunos cobram pedágio dos outros até para ir ao banheiro.

A morte de Edi Greenfeld não foi um caso isolado. Dois dias depois, uma aluna de 17 anos foi assassinada com três tiros no rosto numa escola estadual em Santo André. Na semana anterior, o diretor da creche Araucária, em Itaquera, Israel Cardoso, levou um tiro à queima-roupa e passou semanas em coma com perspectivas de ficar paralisado o resto da vida. Na quarta-feira, um jovem foi morto a tiros por um colega como seqüela de uma briga num jogo de futebol que fazia parte da comemoração dos 25 anos de uma escolado Embu.

A vida cotidiana numa escola de Capão Redondo foi narrada por Sandra da Luz Silva, estagiária do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, na crônica Diário de Aulas, publicada em nosso jornal Braudel Papers e reproduzido no Estado de S. Paulo. Verificamos em nossas pesquisas sobre o ensino público que na periferia de São Paulo trabalham muitos professores e diretores de talento e dedicação num ambiente de desamparo institucional, em meio ao descaso de uma burocracia negligente que, em muitos casos, recorre a manobras para preservar seus cargos a todo custo, sem poder ou vontade de intervir em situação que ameaçam professores, alunos e pais. Existem algumas escolas públicas boas, mas outras são uma calamidade.

A publicação do Diário de Aulas de Sandra do Estadão provocou reação em alguns meios escolares. Não houve contestação aos fatos expostos no Diário de Aulas, um raro documento do cotidiano escolar, mas a conveniência de publicarmos o texto foi criticada. Além das notícias sobre greves de professores e violência nas escolas, nos preocupa a ausência quase total de debate público sobre problemas de ensino, especialmente da crise de aprendizagem. Em dezembro a imprensa noticiou que os brasileiros ficaram um último lugar entre alunos de 15 anos de 32 países em capacidade de ler e escrever, segundo um exame comparativo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de Paris. O exame internacional foi supervisionado por uma técnica brasileira que observou que as respostas mostraram que muitos dos brasileiros nem sequer conseguiam ler as perguntas.

A história da educação brasileira é de luta permanente contra seu legado de atraso. O ensino público está repleto de contradições, mas também registra progressos. De 1932 a 2001, as matrículas no ensino primário aumentaram 16 vezes, de 2,2 milhões para 35,4 milhões de alunos, deixando de atender uma pequena minoria para alcançar quase todos os jovens brasileiros com idade para ir à escola.

A rede de estudantes, professores, escolas e suas respectivas burocracias cresceu enormemente. O número de alunos em escolas secundárias cresceu ainda mais rapidamente, 150 vezes, de 56 mil estudantes em 1932 para 8,4 milhões em 2001, com a maior parte do crescimento concentrada na década passada. Dos 4,1 milhões de alunos do ensino fundamental e médio da Grande São Paulo, menos de 14% estudam em escolas particulares, uma fatia que encolheu, nos últimos anos, com a construção de escolas públicas na periferia. Desde 1990 a rede estadual do ensino médio da Grande São Paulo praticamente triplicou – hoje tem perto de 1 milhão de alunos. Os problemas das escolas públicas da Grande São Paulo mostram que o crescimento rápido gerou uma desorganização que exige um reforço institucional.

Quando o Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial começou suas pesquisas de campo sobre o ensino médio público na Grande São Paulo, a coordenadora da Região Metropolitana nos advertiu que os muitos problemas que iríamos encontrar nas escolas exigiriam propostas concretas de soluções, que fossem além das denúncias. Nos últimos anos, temos respeitado esta prioridade. De nosso trabalho surgiram algumas idéias:

1. Segurança escolar
O Estado de São Paulo opera uma rede de 6.100 escolas com 6,1 milhões de alunos e 300.000 funcionários, com um gasto anual de R$ 7,5 bilhões (apenas R$ 1.230,00 ou US$ 512 por aluno). Ficamos espantados ao saber que, num sistema escolar tão gigantesco, não existe nem sequer um profissional dedicado aos problemas de segurança, para aconselhar professores, diretores e alunos a como enfrentar ameaças de morte nas salas de aula, nos corredores e entradas de escolas.

    A cidade de Nova York também tem problemas de violência nas escolas. Para combatê-los, organizou um corpo de 4.500 agentes de segurança, principalmente vizinhos de bairros pobres que ganham empregos e contribuem para a estabilidade institucional e participação da comunidade nas escolas. Nas unidades mais violentas instalou-se detectores de metal para barrar a entrada de armas. Os diretores e professores recebem orientação detalhada do Departamento de Segurança Escolar sobre como resolver problemas de delinqüência.

    São Paulo tem problemas de segurança escolar muito mais graves que os de Nova York. Deve organizar-se para atenuá-los, criando um corpo treinado e reforçando sua infra-estrutura, o que exige investimento durante anos, com prioridade para os casos mais urgentes. A periferia de São Paulo dispõe de muita gente idônea para servir como agente de segurança e reforçar os laços entre comunidade e escola.

    2. O que fazer com alunos delinqüentes?
    Na periferia de São Paulo, as escolas de ensino médio são pólos de atração para adolescentes de todo tipo, alunos ou não. Comentando sobre ameaças aos professores na zona sul, mencionados em reportagem da Folha de S. Paulo, a então secretária estadual de Educação observou que, "se a região fica mais violenta, a escola vai sofrer com isso. Além disso, hoje temos meninos que estão trazendo problemas mais sérios". E acrescentou: "Mas isso é democracia. Antigamente, expulsavam meninos do colégio." Em outras palavras, segundo o critério oficial, a expulsão iria ferir os direitos humanos do relativamente pequeno número de alunos que costumam perturbar a vida da escola. Cadê os direitos humanos da maioria de alunos e dos professores que estão lá para aprender e ensinar?

    É uma necessidade urgente criar escolas especiais para alunos agressivos que não cometeram crimes mais graves. A ausência desses menores ajudaria muito a tranqüilizar as escolas regulares. Essas unidades especiais funcionariam em regime fechado, com segurança, em horários integral (oito horas). Recebendo a atenção de que necessitam, os menores estariam engajados em atividades intensas de recuperação acadêmica, esportes e trabalho, consumindo boa parte de suas energias, sob orientação de professores especialmente selecionados e treinados, com remuneração condizente com a qualidade de seu trabalho. Esses estudantes poderiam voltar às escolas regulares à medida que progredissem em seu aprendizado e comportamento. Ainda que essas escolas especiais exigissem investimentos adicionais, o gasto seria compensado pela melhoria de produtividade das unidades regulares e pela recuperação de jovens infratores que, sem a devida atenção, podem tornar-se adultos delinqüentes, incorrendo em custos ainda mais altos para a comunidade e o Estado.

    3. Premiar os alunos bons
    Melhorar a qualidade do ensino no não se resolve só mantendo ordem na escola. É preciso também incentivar o bom desempenho acadêmico, criando em cada unidade prêmios em diferentes matérias e categorias, orientados por critérios objetivos. Essas premiações podem ser estendidas a toda a rede municipal e estadual, criando uma saudável concorrência.

    4. Diretores e comunidades nas escolas
    Teoricamente, o diretor de uma escola pública em São Paulo tem autonomia e responsabilidade para a gestão de sua unidade. Na prática, dispõe de poucos poderes administrativos. Nem conseguem nomear ou aprovar os professores enviados para trabalhar em sua equipe. Uma das perversidades da rede pública na periferia de São Paulo é a intensa rotatividade de diretores e professores, que elimina qualquer possibilidade de estabilidade institucional. Em Diadema, onde o Instituto Fernand Braudel conduz Círculos de Leitura para adolescentes e um fórum mensal sobre violência na Câmara de Vereadores, 45 da 67 escolas estaduais trocaram de diretor este ano.

    São Paulo deve adotar uma estrutura parecida com a de Minas Gerais, onde há oito anos a comunidade elege o diretor, por períodos de dois anos renováveis, de uma lista dos três professores da escola com melhor performance no concurso público. A avaliação do desempenho dos alunos ocorre por meio de um exame aplicado em todo o Estado. Recursos financeiros para cada escola (fora da folha de pessoal) são transferidos diretamente da Secretaria de Educação para a Associação de País e Mestres (APM) para serem aplicados a seu critério, mas sujeitos a auditoria. Essa nova estrutura aumentou o envolvimento da comunidade na vida da escola.

    5. Gestão e supervisão
    Precisamos de uma análise profunda e independente da gestão do ensino público, examinando os fluxos de recursos, informações e pessoal no sistema e os incentivos perversos que podem alterar o comportamento profissional dos agentes. A espinha dorsal de qualquer sistema escolar é a qualidade da supervisão, freqüentemente negligenciada no Brasil. Na Inglaterra, na década de 1850, o sucesso da implantação do ensino do ensino público deveu-se à qualidade e dedicação dos supervisores, que examinavam pessoalmente alunos e professores num sistema ainda precário. Em São Paulo, a supervisão funciona de forma aleatória, com cada supervisor, dono virtual de seu cargo, cuidando de um grupo de escolas, sem avaliação de seu desempenho. Em 1999 a Secretaria de Educação tentou reformar o sistema, propondo um modelo com inspeções anuais detalhadas em cada escola, feitas por uma equipe de três supervisores, seguidas por planos de ação e apoio. A tentativa de reforma foi derrubada por resistência de setores da burocracia e dos sindicatos. Na história do ensino público no mundo, toda reforma precisa vencer essas resistência às mudanças e à avaliação de desempenho. São Paulo não é diferente.

    6. Acelerar a munipalização do ensino
    O sistema escolar gigantesco do Estado do São Paulo não é administrável em seu tamanho atual. Não há solução para os vários problemas administrativos do ensino público que não passe pela redução da escala de gestão. Muitas prefeituras resistem à municipalização do ensino público, prevista nas políticas do governo federal e do Estado de São Paulo, que tenta acelerar esse processo. As escolas estaduais nos municípios da Grande São Paulo são especialmente vulneráveis a esses problemas administrativos, que impedem qualquer avanço no controle local da qualidade de ensino. Os três níveis de governo precisam criar condições financeiras e legais para reforçar o controle local.

    7. Papel do setor privado
    A grande debilidade das instituições públicas no Brasil é a falta de liderança cívica. No mundo dos negócios fala-se muito da "responsabilidade social da empresa", mas se faz pouco. O crescimento do ensino popular em todo o mundo sempre foi produto da interface do setor público com o privado. Numa economia como a da Grande São Paulo, para resgatar o potencial de talentos como de nossa estagiária Sandra da Luz Silva e tantos outros, as empresas privadas devem criar colégios privados de ensino médio de qualidade na periferia de São Paulo. Esses colégios seriam abertos por concorrência a todos os alunos da periferia que terminam o ensino fundamental, mediante o pagamento de mensalidades modestas, na medida do possível. A multiplicação desse colégios criaria oportunidades para o avanço econômico e social para alunos e suas famílias, ajudando a estabelecer novas expectativas e padrões de qualidade para o ensino público. Na cidade de São José dos Campos, a Embraer já criou um colégio desse tipo, administrado pela empresa de ensino Pitágoras, cuja sede fica em Belo Horizonte.

    Essas são algumas idéias que nascem de nossa experiência. Deixando de lado, no momento, outras facetas da crise do ensino público, como o preparo dos professores, a superlotação das salas de aula com crianças pequenas – o que atrapalha a alfabetização – e os métodos e materiais de ensino. Sabemos que qualquer mudança importante exigirá tempo e muito mais vontade política do que a sociedade pôde até agora. Estimulamos a divulgação de outras idéias para estimular um debate público mais profundo, que teria uma resposta política e oficial de maior conseqüência que o descaso das autoridades frente ao assassinato da diretora Edi Greenfeld.

(in O Estado de São Paulo – 28/04/2002)

(*) Diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.

     


Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação

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